A pandemia da covid-19, anunciada em março de 2020, trouxe à tona uma categoria do jornalismo pouco conhecida e divulgada, o jornalismo cívico. Também conhecido como jornalismo público, é o movimento que busca inserir o jornalista e seu público, digital ou não, nos processos políticos e sociais, sem serem apenas espectadores dos fatos. Visão que se encaixa perfeitamente na missão do jornalista que é levar ao conhecimento público os fatos e acontecimentos de forma a esclarecer a sociedade sobre o que acontece e as consequências no cotidiano, independente dos riscos a serem enfrentados, perigos esses que foram mais altos durante a pandemia.
Foi assim que despertou, há 22 anos no jornalista Carlos Caldeira, contador de formação e auditor de contas do Governo Federal, a paixão pelo jornalismo investigativo; que passou a ser, depois de seis anos de trabalho voluntário, sua função principal. Aproveitando a experiência como contador e a facilidade para manusear as ferramentas de controle, que incluem os portais da transparência. Ele conta que “essa veia jornalística sempre falou mais alto e fez com que, mesmo aos 59 anos de idade e sendo do grupo de risco por ter sofrido três infartos do miocárdio não se afastasse da linha de frente na cobertura jornalística dos fatos que envolvem a covid-19”, relata o jornalista que participou de todas as coletivas convocadas pelo Governo de Rondônia, sempre levando em conta o distanciamento social.
Durante esse período, Caldeira teve covid-19 duas vezes e viu muitos colegas de trabalho perderem a luta para a doença. “Minha família e meus amigos sempre me cobraram dizendo que eu não deveria me envolver muito, por causa dos meus problemas de saúde. Eu sempre falava que tinha que fazer o meu trabalho, era o meu dever”, conta o jornalista com a voz embargada ao relembrar dos colegas que não estão mais aqui apesar dos esforços reconhecidos do Governo do Estado, por meio do governador Marcos Rocha e do secretário da Saúde, Fernando Máximo, para conter a pandemia.
DESAFIOS IMENSOS
A realidade das redações também mudou completamente, passou a contar com medidas de segurança severas e um número reduzido de profissionais trabalhando de forma presencial. A exemplo de outras empresas, as da área de jornalismo também demitiram ou reduziram a carga horária de trabalho dos profissionais da área.
O repórter cinematográfico e editor de imagens Hudson Guedes foi um dos afetados por essa onda de desemprego em plena pandemia. “Eu trabalhava numa emissora de TV de grande porte e fui demitido, tive dificuldade para voltar ao mercado de trabalho. Tive que me adaptar, me tornei diretor de TV, fazia transmissões ao vivo em um site”, relata o cinegrafista que participou ativamente das coletivas no Palácio Rio Madeira (PRM) e lembra que em uma dessas transmissões recebeu a notícia da morte do cinegrafista Adilson Santos. “As notícias de mortes de colegas nos deixaram muito apreensivos, a gente continuava na linha de frente, fazendo reportagens nas ruas, nos hospitais e expostos a todos os riscos”, complementa Hudson.
O jornalista e radialista Paulo Mota, que atua em televisão num programa policial, também relata que “as dificuldades foram grandes, principalmente por esse tipo de jornalismo que depende de informações, do contato direto com o público. Foi difícil não estar no meio de aglomeração, mesmo tomando todos os cuidados acabei sendo contaminado. Fiquei internado no final de maio deste ano Hospital de Campanha, junto com outras pessoas. Não cheguei a ser entubado, fiquei no balão de oxigênio, e agradeço a Deus todos os dias porque eu venci essa guerra, porque é assim que a gente encara essa doença.
Fiquei até hoje com sequelas psicológicas, foram muitas perdas”, desabafa o jornalista ressaltando o excelente atendimento que recebeu no Hospital de Campanha, inclusive com suporte psicológico para enfrentar o período difícil. Ele salienta ainda a importância de seguir as orientações sanitárias, tendo em vista o risco dessa variedade delta que é muito mais agressiva.
INÚMERAS PERDAS
De acordo com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) até terceiro levantamento divulgado no último dia 10 de agosto, 278 jornalistas morreram vítimas de covid-19 no Brasil, país com maior número de jornalistas mortos no mundo.
Em Rondônia, as perdas inestimáveis envolveram grandes nomes da comunicação. Entre as vítimas está a jornalista Cléo Subtil que morreu em maio deste ano, depois de ficar vários dias internada na UTI.
Cléo Subtil havia perdido o marido também para a doença em abril, dois dias antes de ser internada. Um dos filhos do casal, Luis Antônio de Oliveira Matias de 23 anos, teve que assumir com a perda dos pais a responsabilidade pelos outros dois irmãos, Renan de 19 e Maria Clara de 17 anos.
Luís Antônio, se formou em direito e hoje trabalha na Superintendência de Comunicação do Governo de Rondônia (Secom). Ele relata como foi ver a determinação da mãe que sempre teve paixão pela missão de ser jornalista e que por isso não se afastou da linha de frente. “Digo que minha mãe era movida pela informação e mais ainda quando apareciam desafios para conseguir tal informação, pois ela sempre gostou daquela sensação de dever cumprido enfrentando desafios então, era melhor ainda para ela, mas infelizmente ela teve que enfrentar um desafio para qual não estava preparada a covid-19”, define Luís Antônio.
“Ela faz muita falta, não só dentro da nossa família, mas sei que também na profissão, pois muitos amigos dela conversam comigo e dizem a falta que ela faz no meio da comunicação”, comenta Luís
Ele menciona ainda Cléo era uma mulher muito determinada e por ser jovem, tinha muito ainda para conquistar. “Com o tempo vamos aprendendo a viver sem sua presença, mas jamais esqueceremos dos ensinamentos e valores que foram passados e fizeram ela chegar onde chegou e conquistar o que conquistou.”
Assim como Cléo Subtil, outros jornalistas que não sobreviveram a covid-19 cumpriram seu papel, se colocando no lugar do outro. Foram guerreiros e lutaram até o fim.
Para a jornalista Maríndia Moura, com 28 anos de profissão acostumada a grandes coberturas, essa relacionada a covid-19 tem sido uma das mais difíceis, porque infelizmente ainda não acabou. “No início a gente relatava mortes, e mortes todos os dias. Fila de carros funerários nos cemitérios. Essa doença acabou com famílias inteiras. Uma das perdas mais arrasadoras para mim foi a da Cléo Subtil, trabalhamos juntas por 24 anos”.
Maríndia fala sobre a morte de outros colegas de profissão, como: Marcelo Bennesby, Anysio Gorayeb, Adão Gomes, além de muitos outros.
“Isso acabava com o emocional da gente, ficávamos com a sensação de quem vai ser o próximo ou serei eu. Eu chegava em casa apavorada e tinha crises de choro, sentia os sintomas, achava que estava com covid, tomava remédio e no dia seguinte, graças a Deus estava bem”, confessa a jornalista.
JORNALISMO CÍVICO
Os relatos demonstram que, assim como Cléo Subtil, outras centenas de jornalistas mesmo sabendo dos riscos continuaram atuando firmemente para informar a população, cumprindo seu dever. A literatura descreve um jornalismo cívico diferente do tradicional pela postura adotada pelo profissional da comunicação. Enquanto o jornalista idealizado tradicionalmente é um observador “imparcial e objetivo”, que reporta os fatos sem se envolver, o jornalista cívico entende que deve ser um participante justo (fair-minded participant) e interessado nos acontecimentos que dizem respeito à comunidade que cobre.
O foco principal do jornalismo cívico é justamente esse, dar espaço para questões que preocupam o público e voz a comunidade (e não apenas às fontes oficiais), buscando dar poder de ação aos cidadãos, esclarecer fatos, formar opinião e acima de tudo informar.
ROTINA ADAPTADA
A forma de fazer jornalismo durante a pandemia mudou muito. A jornalista Maríndia Moura conta que “a imprensa teve que encontrar outra maneira de trabalhar, o álcool e as máscaras de proteção viraram também instrumentos de trabalho. Eu não carrego mais somente o microfone, eu ando com álcool no bolso da calça. Além disso, muitas entrevistas no início foram feitas on-line, com uso de dois microfones, tudo tinha que ser esterilizado. Enfim, um jeito novo de dar a notícia”, explica Maríndia Moura.
OUTRA REALIDADE
Enquanto alguns jornalistas precisaram se expor e conviver com o medo de contaminação, possíveis sequelas e morte pela doença, outros tiveram que enfrentar os dilemas e desafios gerados pelo home office e isolamento social. O jornalista Cleuber Pereira, da Secom, foi um dos que teve que se adaptar ao novo sistema de trabalho e diz que “foi um desafio para todos, principalmente para quem trabalhou a vida inteira em redação, no modo tradicional, correndo em busca da notícia. A gente se esforçou bastante para atender às necessidades da Secom nesse período, mesmo trabalhando em casa, devido à comorbidades e idade. A pandemia trouxe além de desafios outros problemas de saúde”, relata o jornalista.
Os danos atingiram a saúde mental dos jornalistas mesmo acostumados a dar notícias ruins, esse momento de tristezas e interrogações levaram a uma montanha russa emocional. O jornalista teve que equilibrar o trabalho diário de informar sem se deixar abalar. Teve que ser forte para encarar tão de perto um cenário trágico para a população mundial em que a informação tem sido o remédio mais poderoso contra as fake news e a banalização da vida.
DOSES DE ESPERANÇA
Apesar de ser linha de frente, assim como profissionais de saúde e segurança pública, os jornalistas a princípio não fizeram parte dos grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI), do Governo Federal, sendo incluídos em Porto Velho somente em julho deste ano.
Para muitos “esticar o braço” para tomar a vacina contra a covid-19 foi um alívio. A jornalista Maríndia Moura comemorou muito esse momento. “Em meio a muita dor, tivemos muitos aprendizados, tivemos que ter mais sensibilidade, nos colocarmos no lugar do outro e mais do que nunca agradecemos a cada dia pela vida. Quando chegou a tão sonhada vacina foi um alívio, no início foi a vacinação dos idosos. Eu olhava e pensava o quanto eu queria aquela vacina, até que foram baixando as faixas etárias e chegou a minha vez. A sensação de estar vacinada é inexplicável, acalenta o coração saber que a gente está imunizada”, desabafa a jornalista aliviada.
Da mesma forma, para Luis Antônio, a vacina trouxe esperança e segurança assim como para muita gente e “agora eu estando vacinado fiquei mais protegido e aos poucos todas as faixas etárias foram sendo incluídas”, destacou Luís Antônio emocionado.
Enfim, cívico ou tradicional, a missão do jornalista é contar histórias, é transformar vidas, é viver a dura realidade e fazer isso com muito amor e paixão. Nada melhor do que encerrar essa reportagem com as palavras de Luís Antônio, filho da jornalista Cléo Subtil direcionada a repórteres, jornalistas, cinegrafistas e demais funcionários dos meios de comunicação.
“São as pessoas que fazem a diferença, não só no nosso Estado, mas no mundo, pois o mundo precisa se manter atualizado de notícias e informações e quem faz isso são vocês, então se orgulhem e façam isso com muito amor como minha mãe sempre fez”.
*contém áudio para rádios nas palavras destacadas
JORNALISTAS QUE MORRERAM VÍTIMAS DA COVID-19